Confesso que já me apetecia participar no blogue há algum tempo.
Gosto do surf como uma experiência global, que não se encerra no acto individual de “correr uma vaga” mas que também engloba a componente colectiva de partilhar a experiência dessa vaga com alguém, de combinar uma surfada, uma viagem, de conversar sobre ondas, estilos, épocas, locais, etc.
Gosto de Surf não só pela essência fugaz de correr uma vaga, mas também pela existência de uma cultura de surf. E uma cultura não é algo de estático, que se fundou em algum tempo e se cristalizou, mas antes uma coisa que acontece diariamente, que nós construímos continuamente.
Estava-ma a arder a vontade de escrever este apontamento devido a algumas participações mais inflamadas que tenho lido aqui no blogue.
Hão-de me desculpar o ar sonante, e talvez pretencioso do título, mas foi a melhor forma que encontrei de sintetizar o assunto.
Revista Surf Portugal, Março / Abril 1994, Artigo "O Mistério da Atlântida"
1.A Divulgação do Surf
Penso que estamos todos familiarizados com a discussão deste tema. Qual o surfista que poderá honestamente alegar não ser ele próprio um produto da divulgação do surf?
Se é que o surf nasce efectivamente nos arquipélagos Polinésios, como é que se alastrou ao mundo senão pela divulgação da experiência?
Quando é que se dá a maior explosão do surf, senão na segunda metade do século XX, com o surgimento das grandes companhias da indústria do surf e com a exposição do surf aos média?
Penso que nenhum de nós se pode afirmar verdadeiramente contra a massificação do surf, uma vez que fazemos todos parte dela...
Sendo assim, será que temos o direito de não querer divulgar o surf? Que não queremos mais gente a fazer surf, a aprender surf?
Quem tem a autoriddade moral para isso?
E quem teria a autoridade para decidir quem pode ir para o mar e quem não pode?
Quem quer tê-la, sequer?
O surf não nasceu nem há de morrer connosco. Há-de continuar a divulgar-se e a regenerar-se, tal como outras actividades humanas.
prancha feita pelo tito, da terceira
2.A Melhoria dos meios para a práctica.
Eu tenho presentemente 28 anos e comecei a andar de prencha em 1993.
Com certeza que guardo saudades dessa altura especial, mas não posso negar que hoje tenho (temos) condições muito melhores para aprender e fazer surf.
Na altura, por exemplo, o que estava a dar eram aquelas pranchas com a flutuação de um palito e o mercado era muito homogéneo, não havia grandes alternativas. Da malta que andava a aprender na altura, os que estavam melhor equipados eram os que tinham shortboards dos anos ’80, mais volumosas e fortes.
Hoje, com a expansão do surf no país e na região, temos acesso a material diversificado, desde o mais apropriado à aprendizagem até ao mais “especial de corridas”, passado por todos os híbridos retro / futurísticos.
Com a Internet passou a estar toda a informação disponível: meteorologia, cartografia, cinematografia, campeonatos, informação sobre shapes, materiais, recifes artificiais, etc. Hoje há mais de tudo, e cada um tem mais por onde escolher para ir fazendo o seu percurso.
Será que a quantidade de shapers que temos hoje nos Açores, por exemplo, não está também relacionada com este aumento da divulgação do surf?
Por tudo isto há hoje mais meios para começar a surfar e evoluir no surf nos Açores.
Praia da Conceição, Faial, Inverno de 1995
3. As condições para a práctica do Surf no Arquipélago
Como todos os que residem nestas ilhas sabem, se há facto que caracteriza os Açores é este clima variável e irregular que nós temos.
Ouvi o Dr. Laborinho Lúcio, ex-ministro da república nos Açores, um dia sintetizar a coisa mais ou menos desta forma:
“Os Açores não são o Paraíso... mas parece. Não são certamente o Inferno... mas às vezes parece.”
Claro que ele não se referia apenas ao tempo, mas achei apropriado.
Penso que a razão principal para os Açores ainda não se terem transformado num destino de surf de massas se prende mais com a especificidade das nossas condições de surf, que propriamente com a divulgação de que temos sido alvo.
Senão reparem: o Arquipélago tem uma evidência geográfica notável, estamos isolados no centro da Atlântico Norte, com toda a importância geo-estratégica que isso acarreta, com uma exposição de 360º às ondulações, com marinas de elevada afluência, com uma aposta de invesyimento fortíssimo no sector do turismo, e, no entanto, a afluência de surfistas vai crescendo apenas palautinamente, segundo vejo.
Penso que dificilmente se podem estabelecer paralelos imediatos com arquipélagos como as Maldivas ou as Mentawais. Basta ir ver uma previsão do windguru para estas ilhas e comparar com aquelas a que estamos habituados para se perceber a diferença. Isto para já não falar do tipo de fundos...
Resumindo, penso que no Surf, como no turismo em geral, estamos condicionados por uma climatologia “não-mainstream”. E ainda bem! Não sou particular fã dos modelos de exploração turística genericamente aplicados aos locais onde se encontram as condições de tempo mais constantes.
Penso que temos condições bem variáveis e irregulares, tanto podemos ter um inverno mau e um verão cheio de ondas boas como o contrário, tudo depende do tempo, e já agora, da ilha em que se está também.
Em particular no Faiale no Pico, não conheço ninguém que tenha vindo cá por menor ou maior tempo,particularmente por causa das nossas belas ondas. Muito embora, ocasionalmente, elas fiquem mesmo boas...
Mas também não vou negar que o Arquipélago tem condições para a prática do surf e que há de continuar a existir, e até a crescer, o turismo de surf nas ilhas.
Mas também o que é que queríamos? Apenas os benefícios da massificação do surf?
Também não viajamos, nós próprios, de vez em quando? Não faz parte da busca de cada surfista por um percurso rico e divesificado?
4.Os Surfistas. A partilha da experiência e a presença do surf na sociedade.
Nem me vou alongar muito na conversa Locais VS Estrangeiros, porque é um assunto que costumo ver tratado de formas que só me fazem lembrar de teorias xenófobas. Como se o surfista e o próprio surf não fossem, por natureza, nómadas.
Mas queria aqui deixar uma ideia. Penso que devemos pôr a tónica na educação de cada um. Educação enquanto delicadeza, rectidão, mas também como consciência de que contribuímos todos pelos nossos actos para a educação uns dos outros, e assim se constrói a Cultura do Surf.
Mais. As ondas não são de nínguém em particular, nem sequer exclusivas dos corredores de vagas. Já lá estavam antes e vão continuar depois de nós. Tudo o que se nos oferece é usofruir delas, partilhá-las, preservá-las e valorizar a sua existência perante o resto da sociedade.
Gosto de surf, de falar sobre surf, de partilhar a experiência, de saber o que se passa nas outras ilhas e noutros lugares. Vejo este blogue e os muitos outros que têm aparecido como suportes para a partilha da experiência e que podem ajudar a criar um debate de ideias e uma auto-consciência da comunidade do surf.
Precisamos de praças, de locais de encontro para podermos falar e organizar perante situações que o exijam.
Obviamente não estou aqui a defender que os sítios da internet como este sirvam para vir expôr desenfriadamente a existência e localização dos lugares de ondas. A descoberta vai-se fazendo, como sempre, progressivamente, e não se quer retirar a possibilidade desse prazer a cada um.
Mas também não concordo que a solução passe por cada um se retirar a um eremitismo e ao secretismo absoluto,e que essa seja a única forma de estar no surf nos Açores e de dar um contributo positivo, caso necessário.
O futuro do surf nos Açores há de ter mais ou menos gente, provavelmente mais. Está fora do nosso alcance controlar isso. Mas podemos todos contribuir para a defesa e desenvolvimento dos locais de surf e para uma evolução saudável da cultura do surf nos Açores.